Hoje é dia de jogo do Brasil. Tenho três meninos loucos por Copa em casa. Eu mesmo queria poder ter tempo de só assistir aos jogos. Mas essa Copa é diferente. Primeiro ser nesta época do ano, depois ser num lugar como o Catar, um Estado que propaga uma visão de mundo indefensável. Um país onde uma torcedora de Pernambuco tem sua bandeira rasgada por homens (é sempre a gente, né?) que confundiram a bandeira com um símbolo LGBTQIA+. Daí você pensa que esse mesmo atraso está nas ruas por aqui, com gente reverenciando pneus, esperando OVNIS salvadores, juntando forças pra fazer um Capitólio à brasileira, insuflado por generais da reserva, bananas de pijamas como Braga Neto e Augusto Heleno, pelo PL do nada corrupto Valdemar da Costa Neto e pelos setores mais retrógrados do agro.
Não sei vocês, mas mesmo hoje que sei que vou torcer muito pro time do Tite, não consigo pensar em colocar uma camiseta da seleção. Na real, ainda arrepio toda vez que vejo uma bandeira do Brasil numa janela, em um carro, num cruzamento. Nesses tempos radicalizados, sempre penso: é um torcedor ou um fascista? Se é gente que representa o Brasil da tortura, do silêncio, do atraso, da devastação ou o Brasil criativo do drible, da ginga, da transgressão, um país onde um compositor genial como Erasmo Carlos é chorado e reconhecido por sua grandeza? Eu prefiro viver neste último, onde mesmo com Copa e apesar dos idiotas, tem muita coisa boa acontecendo.
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Antes de começar, um recado. Esta newsletter fala basicamente de São Paulo, mas no Rio de Janeiro acontece o festival carioca com a alma mais paulistana que eu conheço: o Novas Frequências, que em uma curadoria irretocável do Chico Dub desde 2011. Neste triste Brasil que faz de tudo para destruir nossa cultura, pela primeira vez o Novas Frequências não tem patrocínio. Então, se você é maluco e lê esta newsletter do Rio ou se vai pra lá semana que vem ou na outra, ajude o festival a existir e compre ingressos para as apresentações incríveis que vão rolar neste ano. A vida da cultura vai certamente melhorar a partir de 2023, mas não dá pra esquecer que ainda seguimos sem freio ladeira abaixo.
Pra sair de casa (ou que mané Copa?)
Pensando no Brasil que faz de tudo para dar certo, estreia amanhã amazonias - ver a mata que te vê [um manifesto poético], no Sesc Pinheiros. Misturando dramaturgia, música e dança, o espetáculo é fruto de uma residência artística de seis meses com 35 jovens de 16 a 20 anos e foi gestado em um processo artístico-pedagógico conduzido por Maria Thaís. O mais interessante é que propõe uma aproximação das muitas amazônias, que incluem a da floresta, a dos povos originários, a dos ribeirinhos, a da devastação e a das periferias criativas, só pra elencar algumas, com o universo da cidade de São Paulo e suas muitas camadas periféricas. Fica em cartaz até janeiro. A foto que eu usei é do Ale Catan, capturando um ensaio da peça.
Em cartaz apenas hoje e amanhã no Teatro Sérgio Cardoso, a peça de Aldri Anunciação lançada há 10 anos, Namíbia, Não, que inspirou o filme Medida Provisória, fala de um futuro distópico onde cidadãos de "melanina acentuada” devem ser enviados de volta para a África. Com Aldri Anunciação e Ícaro Silva, e direção de Lázaro Ramos.
Fica até janeiro na galeria Maria Razuk a exposição Lugar de Passagem, de Hilal Sami Hilal, com obras inéditas do artista capixaba que usa dimensões e materiais variados para criar um ambiente de poesia e abstração a partir de molduras vazadas e espelhos cegos.
Outra exposição imperdível é Rodrigo Andrade: Pintura Paisagem, que dialoga com a história da pintura e a observação da realidade a partir de um recorte proposto pelo curador Lorenzo Mammi. Fica na Almeida & Dale até 10 de dezembro.
E sábado tem mais uma edição da ODD, uma das festas com o melhor som da cidade. No line-up, Frontinn, Giu Nunez, My Girlfriend e dois back 2 back’s: Amê com Dixon e Davis vs Vermelho.
E amanhã no Porta tem discotecagem fina da turma do selo Chave com vinil com o mestre DJ Magal e DJ Takeshi.
No domingo rola na Áudio o festival EME DE MUDA, que traz artistas de diferentes regiões do país em encontros com convidados: Marina Peralta com participação de Bia Ferreira e Dow Raiz, Odair José com Otto e Síntese convidando Marechal. Ingresso: 1 kg de alimento.
As ondas latinas do Festival Mucho chegam à sexta edição, de fato, na semana que vem. Mas a partir de terça começa o Mucho + Diversidade em locais, diferentes com Jup do Bairro, Deize Tigrona, Mulamba, Potyguara Bardo.
De shows, hoje rola o encontro amazônido de Anna Suav e Bruna BG no Pompéia e o mestre Osvaldinho da Cuíca no Carmo. Amanhã tem Atønito, que eu amo, no Avenida Paulista, Dani Nega com participação de Alessandra Leão no Pompéia. Domingo rola Josyara no Belenzinho fazendo o show de ÀdeusdarÁ e Bel Aurora fazendo seu A Metanoia no Galpão Cru. Para os corações sensíveis, terça também tem Teago Oliveira, fazendo o show Boa Sorte Ao Vivo no Centro da Terra.
Discos
SO(Ñ)AR, Bella, Amanda Irarrázabal e Inés Terra (QTV)
Uma brasileira, uma chilena e uma argentina. Em comum uma carreira que esgarça os limites da música. A partir de uma ideia-provocação da carioca Bella, se forma esse triângulo experimental, que opera virtualmente, esculpindo a seis mãos um fluxo sonoro mediado pelos sonhos.
A Metanoia, Bel Aurora (Lyra Noise/YB Music)
Produzido por Guilherme Kastrup, o que existe de mais interessante nesse trabalho é a multiplicidade de ângulos que Bel emprega para, ao mesmo tempo, atacar, reverenciar, esculpir e cuspir a canção brasileira, com uma poética aberta e instigante.
Mondays at The Enfield Tennis Academy, Jeff Parker (Eremite Records)
O guitarrista de jazz que também toca com o grupo de pós-rock Tortoise reúne num disco duplo gravações feitas em quatro datas, três antes da pandemia, em 2019, e uma em 2021, em que ele toca com o baterista Jay Bellerose, a baixista Anna Butterss e o saxofonista Josh Johnson no pequeno bar ETA, em Los Angeles. É um disco em que as melodias falam alto, num diálogo com as raízes negras dos spirituals, mas com muito espaço pra improvisação.
Hugo, Loyle Carner (EMI/Universal)
Tem uma coisa no hip hop britânico, essa leitura de segunda mão que traz outras vozes da diáspora negra, que me fascina. Em seu terceiro álbum, o rapper se confronta com a paternidade e canaliza sua raiva com um flow quase desleixado, mas que põe o dedo nas injustiças de maneira ao mesmo tempo introspectiva e política.
Livros
Via Ápia, Geovane Martins (Companhia das Letras)
Primeiro romance do escritor carioca se volta para a realidade da Rocinha, contando como a instalação de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) na comunidade reverbera na história de cinco jovens.
Ira, Priscilla Kerche, Camila Martins e Flora Miguel (Editora Primata)
O livro abre a coleção Plaquetes trança poemas das três escritoras, que têm como ponto de partida criativo a observação do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han de que a ira é um sentimento capaz de promover rupturas e transformações em estados já estabelecidos.
Filmes
Nada de Novo no Front, Edward Berger (Netflix)
Adaptação do livro clássico dos anos 1930 sobre um grupo de estudantes que é convencido por um professor ultranacionalista a se alistar na Primeira Guerra Mundial. No filme, a narrativa se concentra na personagem Paul, e mostra com uma câmera delicada o realismo insano da guerra de trincheiras pelos olhos do perdedor.
Sexual Drive, Kôta Ioshida (Mubi)
Quase uma brincadeira com o gênero softcore, a partir de três histórias: um designer preocupado com sua vida sem sexo, uma funcionária que tem ataques de pânico e um publicitário que quer terminar a relação com sua amante.
Séries
1899 (Netfix)
Aqui no Brasil envolta em polêmica por conta da acusação de plágio de trechos da novela gráfica Black Science, da brasileira Mary Cagnin, a nova série dos criadores da genial Dark, Jantje Friese e Baran bo Odar, mais uma vez olha para as relações do espaço-tempo, agora a partir do encontro de um vapor perdido no mar, no ano de 1899.
Esquemas da Fifa (Netflix)
Já que hoje o Brasil joga na Copa do Catar, vale assistir o documentário que mostra os podres da Fifa, que incluem a escolha desse país sem nenhuma tradição futebolística mas com o um punhado de dólares para distribuir. Nada que nós, acostumados com a cartolagem pátria e os esquemas da CBF, não estejamos carecas de saber. Ainda assim vale ver a história bem contada.