A partir de hoje, vou começar uma nova fase da Ladrilho Hidráulico para curtir em casa. A cada semana, vou me dedicar a um assunto diferente: música, livros, filmes, séries e áudio (audiobooks ou podcasts). Essa nova newsletter vai sair sempre às sextas, perto do fim de semana. Vai ser um teste. Em janeiro, depois de rodar duas edições de cada assunto, quer fazer mais uma consulta para ver se seguimos nesse formato ou voltamos ao anterior. A foto que ilustra a newsletter de hoje é desse trio incrível que vou falar na sequência e foi feita pelo João Atala.
Mocofaia, Luizinho do Jêje, Marcelo Galter e Sylvio Fraga (Rocinante)
Mocofaia não só é um encontro singular, como uma reimaginação incrível da ligação entre África e Brasil, em cima de um tripé que dialoga com o continente mais dominante na nossa música de pontos distintos. O percussionista Luizinho do Jêje, líder do sensacional Aguidavi do Jêje – um dos melhores grupos para ver ao vivo hoje – traz não só o domínio dos polirritmos e das claves tradicionais da música afrobrasileira, como consegue inventar um monte de coisas novas partindo dessa tradição. O outro baiano do trio, o pianista Marcelo Galter, cuja música o mestre Letieres Leite classificou como “um piano afro-brasileiro absolutamente original”, brinca com as harmonias e os baixos, já o carioca Sylvio Fraga traz o violão rítmico e muitas vezes circular, e os vocais que dialogam tanto com o clássico chamado e resposta que está na base da música diaspórica, quanto com as melodias abertas africanas.
Eu não conhecia a palavra mocofaia, precisei do release para descobrir que é uma mistura meio bagunçada, algo entra a zona e a gambiarra. O curioso é que se a palavra pode aludir ao encontro de três músicos com trajetórias diferentes, não é a que melhor descreve o som feito por eles. As sete canções de Mocofaia são absolutamente coesas. A sensação, ao ouvir, é daquelas construções que ultrapassam o cerebral e vão se acomodando a partir da diversão do tocar junto. Quando as ideias cristalizam, todas as partes estão bem resolvidas, com as contribuições de cada um dos três músicos mapeadas, e as conversas paralelas bem desenvolvidas.
Uma das coisas mais interessantes, musicalmente, é que, apesar da complexidade dos ritmos, o groove e as letras acabam aterrando as canções. Os pés e a cintura são condutores mais fieis do que a cabeça. As letras, inclusive, são um caso à parte. Elas trazem uma oralidade forte, evocam a tradição, e têm uma fluência melódica que serve à pulsação. Mesclam imagens corriqueiras, associções de palavras, mas dentro de sua raiz popular, trazem uma série de jogos de palavras e sobretudo uma prosódia riquíssima e super ritmada.
Eu ouço muito da simplicidade enganadora de João Donato nessas canções, mas obviamente o diálogo é maior, o violão de Gil da fase mais afro do fim dos anos 70 está aí também, a explosão percussiva de Naná Vasconcelos, idem. A despeito dos ecos dessas referências, é um som do presente, que não apenas propõe como novas rotas entre África e Brasil como navega bem pelo Atlântico.
Amor não se discute
Songs of a Lost Word, The Cure (Polydor)
The Cure foi a banda que definiu o que era música para mim. Os dois primeiros álbuns que comprei com consciência foram Concert, do Cure, e Hatful of Hollow, dos Smiths. Amo os dois, mas o Cure foi aquela obsessão da adolescência. Até hoje revisto alguns dos discos. O lado bom de ser pai é que sempre se arranja uma desculpa para voltar à juventude. Obviamente, a produção do Cure, impecável durante os anos 1980, oscilou a partir do meio dos anos 1990. O último álbum que eu realmente curti muito foi Bloodflowers, de 2000. Confesso que não esperava muito de Robert Smith a esta altura do campeonato, mas daí vem esse Songs of a Lost Word, que é uma compilação de tudo que é bom no Cure, as guitarras ondulantes, as narrativas ligeiramente desconjuntadas, uma visão do mundo que é romântica e um pouco inadequada, uma esquisitice que é suficiente para fugir do lugar comum, sem espantar muita gente. E pensando no mundo como está e como pode piorar a partir desta semana geopoliticamente desastrosa, essas canções do mundo perdido são uma trilha sonora à altura.
Dei play e curti
Arruda, Alfazema e Guiné, Alvaro Lancelotti, Bolero #9, Lestics, Cascade, Floating Points, Colinho, Maria Beraldo (fiz uma resenha no Meio), CORAL, Zé Manoel, Entre o Velho Tempo Futuro, Caixão, Endlessness, Nala Sinephro, Fala, Teto Preto, Fate & Alcohol, Japandroids, Live at the Adler Planetarium, Exploding Star Orchestra, Mãe Solo, Taís Lobo (feat Cadu Tenório), Nigh Palace, Mount Eerie, Patterns in Repeat, Laura Marling, Pedra de Selva, Curumim, Piedras 1 & 2, Nicolás Jaar, Pode Ser Outra Beleza, Rodrigo Campos, Silêncio, Zé Nigro, Soft Tissue, Tindersticks, Spirit Box, Flying Lotus.
Pequenino
Big Bang/Voyage au fond de l'océan cérébral, Jorge Antunes (XXTRA)
Uma das coisas que me dão alegria na vida é ver gente de vinte e poucos anos se aventurando, como na criação do pequeno selo XXTRA. A piração deles é a intersecção entre música e tecnologia, e o primeiro lançamento é de um dos mestres da música eletrônica de vanguarda brasileira, Jorge Antunes. Esse compacto reúne duas faixas, Big Bang dialoga mais com o mundo lírico, mantendo ecos de um ataque sinfônico, espelhando a natureza expansiva do fenômeno. Já Voyage au fond de l'océan cérébral me encanta com seu carater mais textural e soturno, com progressões de sons que dão justamente a sensação de deslocamento.
Bumerangue
屋根裏 YaneUra Oct. '80, Les Rallizes Dénudés (The Last One Musique/Tuff Beats)
Muita gente chama essa banda formada nos anos 60 em Kyoto de o Velvet Underground japonês. Entendo a comparação, mas acho a brisa outra, mais psicodélica, embora tenha um bocado de noise envolvido. Aliás não existiria Acid Mothers Temple e um bocado das grandes bandas ruidosas do Japão sem eles. Um dos charmes do grupo é não ter álbuns de estúdio, só bootlegs ao vivo. E aos poucos eles estão sendo lançados de forma oficial, com um bom tratamento de som. Esse disco, relançado neste ano, é um ponto fora da curva, porque retrata o breve período em que o guitarrista Fujio Yamaguchi se junta à banda, e traz o blues para a conversa com a guitarra mais angulosa do fundador Takashi Mizutani.
Uma playlist
Uma das coisas que resolvi incorporar na newsletter é trazer convidados. E começo com meu filho Bento Werneck, que tem trabalhado comigo aqui na Ladrilho Hidráulico e está mega imerso no universo do trap brasileiro. Então, pode dar um play na seleção dele de traps nacionais.