Orbital, Samantha Harvey (Vintage Publishing/Penguin)
O quinto romance de Samantha Harvey foi o vencedor do Booker Prize desse ano, um dos mais prestigiosos prêmios literários de lingua inglesa. Mesmo sem ter sido lançado por aqui, certamente um livro como esse será traduzido em breve. Nunca tinha lido nada de Samantha Harvey e baixei uma cópia no Kindle, curioso que sou com o espaço desde a adolescência. Orbital usa um tema clássico da ficção científica, a vida no espaço, para discutir fundamentalmente a humanidade e nossa relação com o planeta Terra.
Ambientado em uma estação espacial a 250 milhas acima da Terra, o livro acompanha seis astronautas durante um dia de 16 órbitas, proporcionando uma visão privilegiada e distanciada de nosso mundo.
A partir dessa perspectiva privilegiada, Harvey explora temas profundos como mudanças climáticas, o sentido da vida, a existência de Deus e a natureza do progresso. Com uma prosa lírica, explora essas questões através de múltiplos pontos de vista, incluindo miradas especulativas de alienígenas, robôs e navegadores pré-históricos.
Um ponto interessante é que o romance não se rende a um enredo convencional. Não há conflitos dramáticos ou reviravoltas surpreendentes. Em vez disso, Harvey opta por um relato meticuloso do cotidiano na estação espacial, usando essa estrutura como base para suas divagações filosóficas e observações poéticas.
A caracterização no livro também foge às convencções. Os astronautas são retratados menos como indivíduos singulares e mais como partes de um todo harmonioso. Um balé sináptico no espaço. Harvey sugere uma espécie de fusão mental entre os tripulantes, apresentando uma visão utópica de unidade que contrasta fortemente com as divisões e conflitos terrestres. Essa representação idealizada, embora rica metaforicamente , pode parecer desconectada das complexidades da realidade humana.
Orbital também faz referências intrigantes a obras de arte famosas, como a As Meninas, de Velázquez, e à icônica foto da missão Apollo 11. Essas alusões servem para contrastar diferentes perspectivas sobre a humanidade e o planeta, enriquecendo as camadas temáticas do romance. A visão da Terra do espaço, central na narrativa, evoca comparações com as recentes e impactantes imagens do telescópio Webb, restaurando um senso de maravilha.
Ao romper com as narrativas tradicionais, Orbital desafia expectativas com sua beleza lírica e profundidade filosófica. Uma meditação sensorial de perspectivas complementares que nos convidam a pensar o nosso lugar no cosmos, contemplando a Terra e a humanidade de um ângulo diferente.
Um poema
Mbiembiembie
o coração do primeiro som do mundo
dentro da múcua meu desejo hiperventila
fiapento esfarela as mãos e por isso fica
tem feitiço brabo nessa voz escura
como pode um zunido correr solto assim ó
fazer essa algazarra
agarrar na pele
Natasha Felix, em Inferninho (Circulo de Poemas)
Da imaginação
Dedico a Você meu Silêncio, Mario Vargas Llosa (Alfaguara), A Cegueira do Rio, Mia Couto (Companhia das Letras), A Coisa e Outros Contos, Alberto Moravia (Cambraia), De Onde Eles Vêm?, Jeferson Tenório (Companhia das Letras), O Dia, Mailson Furtado (Círculo de Poemas), A Dissociação, Nadia Yala Kisukidi (Bazar do Tempo), Febre de Carnaval, Yuliana Ortiz Ruano (Bazar do Tempo), Inverno, Veronica Botelho (e-galáxia), Um Jardim para Tchekhov, Pedro Brício (Cobogó), Leia Esta Canção: Beto Guedes, org. Marina Ruivo (Garoupa Editora), Leia Esta Canção: Ednardo, org. Marina Ruivo (Garoupa Editora), A Louca da Casa, Rosa Montero (Todavia), Olhe as Luzes, Meu Amor, Annie Ernaux (Fósforo), Pretos Prazeres e Outros Ais, Odalita Alves (Pallas), Respiro, Armando Freitas Filho (Companhia das Letras), Rádio Noite, de Yúri Andrukhóvytch (Zain), O Retorno, Dulce Maria Cardoso (Todavia), Riso do Sono, Celina Ferreira (Garoupa Editora), Santo Adamastor, Volume 2, Alexandre Gossn (Autografia), Vai Vir Alguém e Outras Peças, Jon Fosse (Fósforo), A Vegetariana, Han Kang (Todavia) e A Voz que Ninguém Escutou, Renan Silva (José Olympio).
Do real
Babado Forte, Erika Palomino (Ubu), Comida Comum, Neide Rigo (Ubu), Corações de Papel, Nelson Motta (Record), A Cozinha Doidivana, Ivana Arruda Leite (Abarca Editorial), Design Como Atitude, Alice Rawsthorn (Ubu), Discursos de Ódio - O racismo reciclado nos séculos XX e XXI, org. Maria Luiza Tucci Carneiro (Perspectiva), Encontros com Criaturas Notáveis, Entrevistas, Obituários e Obsessões 1987-2024, André Barcinski (Editora Terreno Estranho) King: uma vida, Jonathan Eig (Companhia das Letras), O Mito do Desnvolvimento Econômico, Celso Furtado (Ubu), A Peste | viver a morte em nosso tempo, Jacqueline Rose (Fósforo) e Projeto Querino, Tiago Rogero (Fósforo).
Poltrona de leitura
Nesta semana, convidei o Ronaldo Bressane, escritor e jornalista que faz a newsletter (e revista) Invenções de Morel, que está nas indicações da Ladrilho desde sempre, para trazer uma dica de livro:
Vou indicar Nostalgias Canibais (Ayiné), do Odorico Leal, porque é um dos melhores livros que li este ano. E também porque é um livro de contos. Existe uma falsa premissa segundo a qual “brasileiro não gosta de ler conto”, “livro de conto não vende” etc. Num país que adora ler cronistas e já teve entre os mais vendidos livros de Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector, cujo maior autor vivo é Dalton Trevisan, este mandamento não procede. E Leal é um brilhante representante de nossa tradição de formas breves. Verdade que o primeiro conto, Paraíso canibal, puxa esse livro lá pra cima e desequilibra um pouco o conjunto, por conta de sua premissa muito original: um indígena imortal que, dos 1500 até hoje, vem comendo gente. Um pícaro, uma espécie de Macunaíma vampiro, que, depois de ingerir uma substância soprada por um pajé, não morre mais. Ele vai encontrando diversos personagens ao longo da história, se aproxima deles e, pá, os come. Como um vampiro, vai mudando de identidade através dos tempos. Alguém pegue essa premissa e faça um filme ou uma série. Leal tem um humor muito sofisticado e uma linguagem que, na busca pela diversão, lembra Reinaldo Moraes. Outro conto ótimo é História da feiúra, narrado por um mal-diagramado frustrado que cai na leitura de Umberto Eco. Os gatos adota o ponto de vista de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, dois felinos revoltados com as más escolhas amorosas de sua dona, Andressa. Uma história que termina mal, assim como O jardineiro, em que o protagonista é um pobre diabo largado pela namorada, que acaba virando pai de planta. Este e o conto A febre dioneia são habitados por um bizarro movimento político chamado Getulinhos, que lembra alguma das seitas surgidas pós Junho. Enfim, faça como a geração TikTok e adote ficções curtas. Mas só se forem tipo as do Leal. Você vai se sentir bem mais inteligente que um tiktoker médio (não precisa muito).
Lista pra salvar. To louca pra ele Orbital!!!! Já tava na lista, agora fiquei com vontade de passar na frente (mas tô aqui engolindo V13, do Emmanuel Carrere)
Fiquei com vontade de ler Orbital, de Samantha Harvey. E aproveito o seu comentário pra recomendar um livro similar da chinesa Hao Jingfang, que eu li há pouco: Jumpnauts, na tradução em inglês, ou Saltonautas, em espanhol. Também tem viagem espacial, fusão mental entre os viajantes, visão da vida terrestre em perspectiva (no caso, mesclando o ponto de vista alienígena com oportunos conceitos confucionistas). E projetando as contendas geopolíticas atuais num futuro em que o nosso maltratado planeta se divide entre as beligerantes Aliança Atlântica e Liga do Pacífico! Infelizmente, que eu saiba não há nada de Hao Jingfang traduzido por aqui, apesar de a autora desfrutar de certo prestígio lá fora. Ela inclusive ganhou o Prêmio Hugo pela novela Folding Beijing. Esta eu li na versão francesa Pékin Origami, publicada na coletânea L'Insondable Profondeur de la Solitude - que eu também recomendo.