A Substância, Coralie Fargeat (MUBI)
“Não existe terror na explosão, apenas na antecipação dela" é uma das frases mais famosas de Alfred Hitchcock, mestre do suspense. Muitos amigos queridos, fãs de cinema, confessaram não ter vontade de assistir ao segundo longa de Coralie Fargeat por não ter mais capacidade de assistir a filmes de terror. O argumento cai por terra rapidamente por que A Substância não é um filme de terror, justamente porque trata da explosão, não da antecipação. O que não quer dizer que não lide com medos contemporâneos.
Esse foi um dos filmes que mais gostei de ver recentemente pela maneira como aborda três temas centrais para entender o mundo de hoje, e também por uma questão formal.
O primeiro é o narcisismo, uma questão que acompanha a humanidade desde a invenção do conceito de beleza, mas que tem acelerado de forma exponecial neste mundo mediado por redes sociais. Sem fazer uma marcação temporal, o filme todo remete aos anos 1980, que é uma época em que a beleza começa a ser padronizada, saem os dentes tortos e entram as bocas reluzentes, a modificação corporal cirúrgica e as próteses passam a ser corriqueiras, o culto ao corpo ganha as massas com a febre das academias e os yuppies conseguem fazer da moda a coisa mais aborrecida do mundo. Esse mundo que é só espelho é o embrião do nosso espaço digital assolado por filtros de imagem e tutoriais de maquiagem.
A combinação da ditadura da beleza com o narcisismo é central para a personagem principal do filme, Elisabeth Sparkle, quase um duplo da Jane Fonda dos anos 1980, uma atriz que se transforma em estrela da aeróbica na TV e tem de encarar o fim forçado de sua carreira.
O segundo é o envelhecimento. Não é fácil envelhecer, e existe uma pressão para se manter jovem. Não à toa o valor da indústria anti-envelhecimento hoje é estimado em 62 bilhões de dólares. Esse não é um tema novo. Talvez tenha sido explorado da melhor maneira por Oscar Wilde em seu Retrato de Dorian Grey, publicado em 1890 na Inglaterra. Sua atualidade, contudo, é indiscutível. Sobretudo quando somos sempre levados a achar que a nossa geração envelhece com mais dignidade. Os 50 são os novos 30. Será?
E o terceiro é a questão da disputa entre criatura e criador. Não existiria terror gótico sem a mãe das histórias de mosntros que se voltam contra quem os criou. Frankestein é praticamente um mito moderno, uma história que vem sendo recontada de diferentes formas desde a publicação do livro por Mary Shelley em 1818. E o medo da criatura é ainda mais profundo e arraigado na cultura ocidental. Alguém lembra de como nasce a primeira mulher, aquela que põe tudo a perder? Pois a substância, aqui, não deixa de ser a maçã.
O tratamento desses três elementos em A Substância é muito maior e mais interessante do que a venda fácil do rótulo de terror corporal exprime. Mas aí entra o principal elemento para quem gosta de cinema. O filme é também uma ode ao cinema experimental que ganhou o mainstream a partir da metade dos anos 1970. E o maior homenageado de todos é sem dúvida David Cronenberg, talvez o maior expoente do terror corporal, justamente porque o usa esteticamente como elemento de crítica social.
Se Cronenberg é central, ele está em boa companhia no filme. O jeito com que Coralie Fargeat filma, desde seu primeiro longa, Vingança, é cheio de reverência aos mestres. E aqui não faltam homenagens, à Carrie, a Estranha, de Brian de Palma, a O Iluminado, de Stanley Kubrick, ao Homem Elefante, de David Lynch. Faz isso sem cair no pastiche, porque dialoga, não copia. Se isso não bastar para convencer o fã de cinema, ainda há a melhor interpretação já vista de Demi Moore. Vai sem medo.
Não-ficção
Um Criador Infernal, João Batista de Andrade (TV Cultura/YouTube)
Esse é um filme curto sobre Carlito Maia, essa figura única paulistana, com seus famosos bilhetes e uma pessoa que meio que viveu para tentar transformar o sistema por dentro. Estava na cúpula que ajudou a sedimentar o poder da TV Globo e foi um dos mais carismáticos fundadores do PT, conseguiu colocar no mesmo mundo os postos Shell e os Mutantes. Muito legal ver o Carlito por quem o conheceu. Eu mesmo estive com ele poucas vezes, mas não o conheci. Por outro lado, pude conhcer muitas das suas histórias pela amizade de anos com sua ex-mulher, Tereza Rodriguez. E o humanismo do Carlito é motivo suficiente pra assistir esse doc.
Curta
Four Unloved Women, Adrift on a Purposeless Sea, Experience the Ecstasy of Dissection, David Cronenberg (MUBI)
Falando no diabo.Um filme-poema com manequins, vísceras, gaivotas e gemidos, que merece ser visto numa tela boa com um som alto.
Pipoca fresquinha
O Amor Sangra, Rose Glass (Max), Armadilha, M. Knight Shayamalan (Max), Aumenta que É Rock 'n' Roll, Tomás Portella (Globoplay), Bob Marley, One Love, Reinaldo Marcus Green (Paramount+), O Dublê, David Leitch (Prime), Emily, a Criminosa, John Patton Ford (Prime), Garotas em Fuga, Ethan Cohen (Prime), Lobos, Jon Watts (AppleTV+), O Mauritano, Kevin McDonald (MUBI), Music by John Williams, Laurent Bouzerau (Disnley+) O que Tiver que Ser, Josephine Bornebusch (Netflix), Pedro Páramo, Rodrigo Prieto (Netflix), Tornados, Lee Isaac Chung (Max).
Ladeira da memória
O Babadook , Jennifer Kent (MUBI), Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança, Michel Gondry (Netflix), Crimes Obscuros, Kyioshi Kurosawa (MUBI), Demência 13, Francis Ford Coppola (MUBI), Um Dia de Cão, Sidney Lumet (Max), Gladiador, Ridley Scott (Prime), Güeros, Alonso Ruizpalacios (MUBI), Ran, Akira Kurosawa (MUBI), Os Suspeitos, Denis Villneuve (MUBI), Terra Estrangeira, Walter Saller e Daniela Thomas (Globoplay).
Na cabine
Agora pretendo ter sempre um convidado trazendo uma dica. Nessa estreia, chamei meu amigo João Tenório, diretor, para escolher um filme disponível no streaming que ele tenha gostado. Olha só:
Matador de Aluguel, Doug Liman (Prime)
“Fico com Road House, um filme com Jake Gyllenhaal. Ele fez treino de MMA durante um ano pra entrar no papel e ficou gigantesco. É um remake de um filme com o Patrick Swayze anos 1980. Fazia tempo que o Jake queria fazer esse filme que ele mesmo produziu. Eu achei muito divertido e adorei a mistura de Clube da Luta com Se Beber Não Case. O filme é dirigido pelo Doug Liman, que foi diretor do Identidade Bourne, então ele tem uma cenas de pancadaria muito bem filmadas. Aliás é pancadaria do começo ao fim com muita coisa de humor no meio.”
Adorei esta análise do filme Substância, mas tenho que comentar como é curiosa a leitura de um homem sobre o filme:
»» Coloca 3 temas centrais e NENHUM deles é o patriarcado. Eu sei, lá vem a feminista chata, mas pra mim fica muito claro, no filme inteiro, a demonstração de como para os homens é OK envelhecer, mas pra mulher é o próprio inferno na terra! O que tira um pouco dos pontos do “narcisismo” e leva para um lado de: uma mulher tentando se manter no topo numa sociedade que só enxerga e valoriza as mulheres até um certo prazo de validade (?) Não sei, só acho.
De resto, texto ótimo! Também só vejo o terror aí no sentido gore, aquela vibe Christiane F. se picando o tempo todo... Uns 40% do filme eu tinha que virar o rosto por puro nojinho hahaha