A Garota da Agulha, de Magnus von Horn (MUBI)
Antes de mais nada, como qualquer brasileiro sensato, estou na torcida por Ainda Estou Aqui e por Fernanda Torres no Oscar. E como toda boa competição, é mais gosotoso quando você consegue superar rivais à altura. Sendo bem sincero, na verdade nem acho que exista espaço pra esse tipo de competição. Se acreditasse, talvez pensasse que a Gwyneth Paltrow fosse melhor do que Fernanda Montenegro. O que não faz nenhum sentido.
Com essa ressalva, que filme forte é A Garota da Agulha. De todos os concorrentes de Ainda Estou Aqui ao Oscar de Melhor Filme Internacional, ele foi o que mais fez a minha cabeça, por diferentes razões.
A primeira, quase sempre a mais importante, é a história, o roteiro. O filme começa em Copenhagen no fim da Primeira Guerra Mundial e se estende pelos anos subsequentes. A personagem principal, Karoline, trabalha como costureira em uma fábrica e, com o marido desaparecido, não consegue ganhar o suficiente para se sustentar. Tentando dar o menos de spoiler possível (se não quiser nenhum, pule para o próximo parágrafo), ela engravida de um amante e sua situação fica ainda mais difícil. E a realidade em que está enredada faz com que ela deseje se livrar do bebê. Nesse processo, ela acaba envolvida em um esquema de adoção ilegal.
Como nos melhores filmes do Dogma, a bondade humana é colocada em xeque o tempo todo, e o roteiro, que é baseado em fatos reais, não poupa a humanidade de se confrontar com o seu pior. Uma espécie de exploração de um sítio arqueológico que descortina camadas sucessivas de hipocrisia. E aí estamos falando das relações laborais, dos vínculos afetivos, dos efeitos da guerra, da disputa entre classes socias, da maternidade, do aborto, da caridade e da imoralidade.
Mas um bom roteiro não garante um filme grandioso. E a maneira como Magnus von Horn conduz essa história dramaticamente é um outro ponto importante. Com uma direção de atores primorosa, não há vestígio de excessos. E essa economia é amplificada pelo diálogo cinematográfico que abre com os filmes mudos, sobretudo com o expressionismo alemão, que teria seus melhores anos no pós-Primeira Guerra, justamente o período em que se passa a história.
Esse balanço entre o rigor da atuação e a estética expressionista, sustentada pela deslumbrante fotografia em preto-e-branco de Michal Dymek, é o maior acerto para construir a tensão crescente da narrativa.
Um último ponto, para mim que sou louco por música, é a trilha, principalmente a maneira como Puce Mary, com seus som pós-industrial, que beira o noise, se encaixa nessa história passada na virada da primeira para a segunda fase da revolução industrial.
E tem um momento que, para nós, brasileiros, é sublime. Numa cena no cinema, o filme projetado traz como trilha a valsa Sublime Provação, do carioca Eduardo Souto, autor de marchinhas carnavalescas e do hino do Botafogo, na voz da atriz e cantora do rádio Alda Verona. Em que pese o anacronismo — a gravação usada no filme é de 1929, alguns anos à frente da história —, o momento em que ela toca traz um feixe de alegria a iluminar um instante de relaxamento em um filme que é brutal quase o tempo todo.
Não-ficção
Democracia: uma história sem fim, Ricardo Rangel (Meio)
Esse é o primeiro documentário de uma série de filmes que o Meio, onde sou editor executivo, está preparando para o seu streaming. Essencialmente político, o doc escrito por Sérgio Rodrigues não é apenas uma defesa da democracia, mas da Nova República. O argumento principal é o de que nunca um regime entregou tanto para os brasileiros como aquele que se desenvolve a partir da Constituição de 1988. Sem desconsiderar os riscos, as fragilidades e as disputas pelas quais passam todas as democracias liberais hoje.
Curta
L’Avance, de Djibi Kebe (MUBI)
O que me cativou nesta história simples, estreia do jovem diretor que vem do coletivo Air Afrique, são duas coisas: uma é a beleza da simplicidade e a outra é o quanto ele consegue dizer, falando pouco. O filme acompanha um jovem pintor, que é visitado por uma compradora em seu ateliê e segue a jornada do seu dia até entregar o quadro vendido em uma festa no apartamento da colecionadora à noite. Nesse trajeto, discute o mercado de arte, as relações da cidade, memória, a família, o dinheiro e o acesso. Tudo com muita delicadeza e beleza.
Na cabine
O convidado para indicar um filme nesta edição é meu irmão do coração: André Brandão, fotógrafo, baita diretor, que daqui a pouco trará novidades. Aguardem.
De Tirar o Fôlego, Laura McGann (Netflix)
Não me lembrava, de cabeça, de nenhum filme de streaming que quisesse indicar. Fui procurar alguma coisa e caí no mesmo de sempre, procurando sem encontrar nada, ainda mais porque estava exigente com o desejo de ser uma boa indicação.
Dei uma primeira olhada na Prime, e não encontrei nada. Resolvi procurar algum documentário no CurtaOn, que tem muita coisa boa. Logo nas primeiras sugestões apareceu um filme chamado Aílton Krenak e o Sonho da Pedra. Tenho pensado bastante que os indígenas são as únicas sociedades que atualmente detêm a sabedoria de conviver com a natureza. A civilização foi construída destruindo a natureza, e parece que não sabe muito como parar. Já a floresta amazônica é manejada por muitos povos durante milhares de anos. É um feito e tanto. Mas a nossa tem sido uma aproximação cruel e difícil, talvez elas sejam uma experiência de comunidade ainda muito radical para nós, questionando a própria fundação da civilização.
Mas não achei o filme bom, o filme brilha porque o Krenak é brilhante. Então só vai interessar a quem já se interessa pelo assunto, como tantos docs. Resolvi procurar algo na Netflix, mas logo antes de sair da Prime vi A Batalha do Passinho, sobre as competições de passinho no Rio de Janeiro, que assisti o ano passado e adorei. Recomendo.
Na Netflix, como estava na vibe dos Krenak e indígenas, pesquisei ‘Indígenas’. Apareceram algumas primeiras opções que não me chamaram a atenção, fui descendo e lá pela 6ª ou 7ª fileira tinha um filme chamado Santo Forte, que me cativou pelo nome e pela foto. Fui ver o que era. Logo que começou vi que era um filme do Eduardo Coutinho, e fiquei com um pouco de vergonha de não ter reconhecido o grande mestre do documentário. Um filme brilhante, lindo, de longas entrevistas com personagens sedutores e um pouco delirantes, como a maioria que eu vi do Coutinho. Sobre moradores de uma comunidade carioca que são católicos convictos e espíritas praticantes, principalmente umbandistas.
O filme mostra um sincretismo comovente junto com uma boa dose de alucinação coletiva. Com as histórias de todos sendo entremeadas pelas histórias das entidades, impossíveis de saber o quanto são reais e o quanto são imaginárias. Um documentário em que em quase nenhum momento sabemos o que é verdade. A maioria das histórias revolve ao redor do bem e do mal, da ruindade e da bondade. Em que os mitos trazem explicações simples e as entidades são presenças vivas que tem impacto direto nos acontecimentos.
Senti um certo senso de loucura das nossas próprias identidades, todas construídas ao redor dos mitos e do amor, ou da falta dele. Mas não sei o quanto percebo os meus próprios mitos. Será que existe mesmo uma inteligência coletiva inata que é capturada por uma religiosidade? O que separa a inteligência coletiva de alucinações coletivas? Será que de alguma forma essas inteligências coletivas se conectam com a inteligência coletiva criada pelas IAs? Será que a IA irá criar novas inteligências coletivas? Me fez pensar nessas coisas.
Mas não queria recomendar um clássico, mesmo que acidental. Então me lembrei de um filme também da Netflix que tinha visto em 2023, The Deepest Breath. O título em português, De Tirar O Fôlego, é ruim, mas verdadeiro. O filme, um documentário da produtora A24, mantém o tempo inteiro uma intensidade e um suspense inquietantes. Uma história magnética sobre a tentativa de Alessia Zecchini, uma campeã mundial de mergulho livre, de mergulhar no lugar mais perigoso do mundo, chamado Blue Hole. Apoiada por seu treinador e parceiro de vida, Stephen Keenan.
Logo no começo você já fica sabendo que cada mergulho é feito com uma única respiração e, no instante seguinte, mergulhamos com Alessia e acompanhamos, segundo a segundo, um mergulho de três minutos e meio, com a mesma inspiração.
E essa sensação de falta de respiração e fascínio acompanha até o final, junto com a fixação pelos personagens, pessoas com paixões tão grande e escolhas tão inusitadas, difíceis e perigosas. Com direito a todos os desafios e antagonismos que um esporte extremo oferece, riscos também extremos, rivalidades, intrigas, desafios.
As entrevistas e a construção da história são impecáveis, e o filme é exuberante, sinestésico, com uma mistura de imagens muito bem costurada. Os próprios personagens se documentaram muito e, sendo grandes atletas, foram muito documentados. E viviam e competiam em lugares quase de fantasia, tem cenas aquáticas maravilhosas, mergulhos longos e intensos.
É tudo muito lindo, cativante e perigoso ao mesmo tempo. Você sente o oxigênio passando pelo seu corpo, fica quase grato por ele. Mesmo com uma construção intensa e com muito ritmo, o filme honra inteiramente as profundezas de algo que flerta com a morte. Um outro universo, lá embaixo.
Pipoca fresquinha
Altos e Baixos do Amor (Netflix), O Assassino do Calendário (Prime), Bad Boys: Até o Fim (Max), Batalhão 6888 (Netflix), Bogotá: A Cidade dos Sonhos Perdidos (Netflix),Com Você no Futuro (Prime), A Cozinha (Max), Dahomey (MUBI), De Volta à Ação (Netflix), Demon City (Netflix),The Dry 2: Força da Natureza (Prime), Entre Montanhas (Apple TV+), A Freira 2 (Prime), Grand Theft Hamlet (MUBI), Halloween Ends: O Acerto de Contas Final (Netflix), História de Amor em Copenhague (Netflix), Homens Brancos Não Sabem Enterrar (Disney+), Ingresso para o Paraíso (Netflix), Invasão de Lua de Mel (Netflix), Irmãos de Honra (Max), A Ordem (Prime), Matt e Mara (MUBI)
Minha Culpa: Londres (Prime), Nickel Boys (Prime), Queer (MUBI), A Semente do Fruto Sagrado (Telecine), O Triângulo da Tristeza (Max), Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Max), Vietnã: A Guerra que Mudou os EUA (Apple TV+), Viva os Noivos (Netflix) e The Witcher: Sereias das Profundesas (Netflix)
Ladeira da memória
500 Dias com Ela (Disney+), Bully - Juventude Violenta (MUBI), Um Cão Andaluz (Telecine), O Carrasco (MUBI), Cecil Bem Demente (MUBI), Desejo de Matar (Telecine), Gladiador (Netflix), Grease: Nos Tempos da Brilhantina (Netflix), Mouchette (MUBI), Nine (Max), A Ponte do Rio Kwai (Telecine), A Proposta (Disney+), Razão e Sensibilidade (Max), Rodrigo D: No Futuro (MUBI), Shangai Blues (MUBI), A Teoria de Tudo (Netflix), Valsa com Bashir (Max) e A Vida É Bela (Netflix).
Vi ontem de noite. Que porrada. Para além da história e da estupenda atuação da protagonista, a fotografias é um espetáculo.