Dorival é um pilar incontornável da música brasileira. Por motivos diferentes, vejo duas celebrações do gênio do trovador baiano —em estilo e modo de usar—, presentes em dois grandes discos recém-lançados. Começando pela ligação mais direta: Repescagem, do Quartabê, que sai pelo selo RISCO. Como o próprio nome indica, parte de onde o excelente Lição # 2: Dorival havia parado: são fantasias a partir da obra de Caymmi transformadas pela sensibilidade desse quarteto singular, com sua dupla melódica (ou não) marcadas pelas vozes, clarones e clarinetes de Maria Beraldo e Joana Queiroz, pelos teclados de Chicão e pela bateria expansiva de Mariá Portugal. Uma melodia, um ritmo, uma harmonia caymmiana são suficientes para catalizar uma criação que é livre e altamente imaginativa, com muitos graus de abstração. Clássicos como João Valentão, Maricotinha (com Ná Ozzetti) ou Quem Vem Pra Beira do Mar ganham versões que só o entrosamento desses quatro músicos poderia criar. Assim como Dorival, a Quartabê vai fazendo um disco genial depois do outro.
A segunda ligação é menos direta. Talvez até seja só uma viagem minha, de tanto que gosto das canções dele. O que quero dizer é que se há um Caymmi contemporâneo, alguém cuja produção é toda feita com o vagar das ondas e o sopro das brisas, sem se render aos nossos tempos apressados, essa pessoa é Junio Barreto. Junio lançou há pouco seu terceiro disco, O Sol e o Sal do Suor. Antes, vinha de Setembro, de 2011, e do disco de estreia que leva seu nome, de 2004. Se suas canções demoram a vir à luz do dia, elas resplandecem beleza. As letras são de uma simplicidade enganosa, filosofia de botequim e metafísica lascada, emolduradas por arranjos claros, e justamente por isso poderosos. São canções em que tudo se encaixa, faz sentido e é sentido no que tem de mais frágil, mais efêmero, um espelho de sua voz, com sua oscilação marítima, sua força que quebra na praia e encanta quando é toda espuma.
Discos
Outer Spaceways Incorporated, Kronos Quartet & Friends Meets Sun Ra (Red Hot Org)
Quem teria autoridade para revisitar com liberdade as esferas cósmicas de Sun Ra? Consigo pensar em pouca gente. Seguramente em ninguém melhor do que o Kronos Quartet, com seu trânsito singular entre o popular e a vanguarda, assim era Herman Poole Blount, esse filho do Alabama da década de 1910 para quem a terra não era o lugar. Legítimo afrofuturista, Sun Ra rompeu com as convenções desse mundo e, para traçar esse mapa astronômico por novas rotas, o quarteto de cordas traz para a criação desde gente como Marshall Allen, o maestro centenário que ainda flutua num disco voador, até a brilhante Jlin, a melhor beatmaker de hoje. Entre os dois extremos, muitos convidados gigantes como Laurie Anderson e Laraaji.
Night Rein , Arooj Aftab (Verve)
Já no título a compositora paquistanesa radicada nos Estados Unidos estabelece a noite como lugar de existência desse conjunto de canções. Existe um eco entre o luto de Vulture Prince e essas novas criações, embora haja também algo luminoso na travessia dessa madrugada. Existe a transpiração do ghazal, esse gênero paquistanês que é quase um blues entre a melancolia e a saudade, mas também uma leitura do folk de quem cresceu no Brooklin. Mesmo a escolha de fazer uma versão para Autumn Leaves dá uma pista de que talvez esse seja um disco mais crepuscular do que um passeio nas trevas.
Rampen (apm:alien pop music), Einstürzende Neubauten (Potomak)
Esse disco é para quem realmente gosta do experimentalismo dos alemães. Rampen é a rampa do foguete que lança no espaço esse conjunto de 14 canções, feitas para ouvir num vinil duplo, afinal é preciso respeitar a ordem de lançamento dessa coleção de pop alienígena. Composto todo a partir desse conceito, as canções nascem das improvisações sonoras que seguem concretas, embora bem mais sutis e controladas do que o caos criado a partir da amplificação de equipamentos de construção nos anos 1980. A essas bases Blixa Bargeld adiciona as vozes com mapas disconexos de seu processo de ebulição mental. Um disco para decifrar aos poucos, e voltar a ele sem moderação.
WHERE NEXT, Sandwell District (Point of Departure)
Essa é uma compilação que quem estava na pista no início dos anos 2000 em diante vai captar. Como Sandwell Distric, os produtores Function, Regis e Silent Servant captaram o espírito do tempo em uma série de singles antológicos, de onde boa parte dessas tracks nascem. Além de hits como Man Is the Superior Animal, Reykjavik e Sampler 1 B1 - Regis Edit, são desenterradas faixas que dão o corpo dessa produção e também mostram a planta baixa de um estilo de techno que se desdobra no tempo até hoje.
Livros
A volta à noite em cinquenta canções, Juliana Magalhães (Publicação independente)
O quarto livro da jovem autora reúne 50 poemas escritos a partir de 50 canções. Um trecho do prefácio de Tatá Aeroplano expressa bem a experiência dessa leitura extremamente engraçada: “Não é todo dia que você encontra a Yoko Ono trocando ideia com o Roberto Carlos na fila do cinema ou dá de cara com a Fiona Apple jogando xadrez com o Sérgio Sampaio no parque mais descolado da cidade.” (MARIA CLARA STRAMBI)
O que não tem censura nem nunca terá, Márcio Pinheiro (LP&M)
Nos 80 anos de Chico Buarque, é sempre bom lembrar. Talvez Chico, até por ter dado dribles magistrais, foi um dos artistas mais censurados pela ditadura militar. E fez sua melhor obra nesse embate com a repressão. Debruçado sobre essa relação entre arte e censura, Márcio Pinheiro dá concretude ao olhar vigilante para a produção de Chico Buarque.
Filmes
Diz a ela que me viu chorar, Maíra Buhler (AppleTV+)
Em um dos documentários mais comoventes que vi nos últimos tempos, uma equipe de filmagem acompanha os moradores de um hotel social que existiu no Parque Dom Pedro, em São Paulo. O doc revela o cotidiano perturbador das vidas devastadas pelo crack, nos conduzindo de maneira corajosa por uma realidade trágica e muito humana. (MCS)
In-Edit online (Itaucultural Play, SPCinePlay, Sesc Em Casa)
Até amanhã ainda dá pra ver os 20 docs que estão na mostra online do In-Edit, o festival de documentários musicais que passou por São Paulo. Eu não perderia 3: I Dream of Wires, de Robert Fantinnato, O Homem Crocodilo, de Rodrigo Grota, e Black Future, Eu Sou o Rio, de Paulo Severo.
Série
O Jogo que Mudou a História (Globoplay)
Criada por José Junior, a série retrata o surgimento das facções no Rio nos anos 1970, com o olhar de quem conhece bem essa história e até hoje convive com seus desdobramentos. Com um elenco forte, os personagens baseados em figuras reais guiam a trama ambientada nos becos mais sombrios da cidade maravilhosa. (MCS)
Acima de Qualquer Suspeita (AppleTV+)
Para quem é jovem há mais tempo, essa serie é uma refilmagem do filme de mesmo nome com Harrison Ford, baseado no best seller de Scott Turow. Jake Gyllenhaal está brilhante como o promotor que se torna o principal suspeito no assassinato de um de seus colegas.
Podcast
Corda Bamba - Foyer Digital
Nicole Cordery, Larissa Ferrara, Marcela Rosis e convidados conversam sobre temas recorrentes na vida do artista da cena. Carreira, produção independente e políticas públicas são algumas das pautas abordadas nos episódios que, com muita contundência, abrem frentes de debate e ajudam a sanar uma grande falta da classe teatral: conteúdos sobre a relação tão complexa que é a dos atores com o mercado de trabalho no Brasil. (MCS)
A Ladrilho Hidráulico agora é feita também pela Maria Clara Strambi